21 de maio de 2025

O Taekwondo Olímpico está matando a verdadeira arte marcial?

O Taekwondo Olímpico está matando a verdadeira arte marcial? Por que o foco em medalhas está destruindo a essência do Taekwondo tradicional

Introdução

O Taekwondo, arte marcial coreana, tem passado por transformações significativas nas últimas décadas. Com sua inclusão nos Jogos Olímpicos em 2000, o que deveria ser motivo de celebração para os praticantes, acabou se tornando um divisor de águas na história desta nobre arte marcial. Como mestre com mais de três décadas de experiência, tenho observado com preocupação como o foco excessivo em medalhas e competições tem gradualmente afastado o Taekwondo de suas raízes e princípios fundamentais.
Neste artigo, abordaremos uma questão polêmica, mas necessária: O Taekwondo Olímpico está realmente matando a verdadeira arte marcial? Analisaremos como a busca por resultados competitivos tem transformado academias em “fábricas de atletas”, muitas vezes negligenciando aspectos essenciais que fazem do Taekwondo muito mais que um esporte de combate.

As origens do Taekwondo e sua transformação

O Taekwondo tradicional foi desenvolvido não apenas como um sistema de combate, mas como um caminho de vida completo. A palavra “Tae” significa pé, “Kwon” representa punho, e “Do” simboliza o caminho ou a filosofia. Portanto, o Taekwondo vai muito além de técnicas de luta – é um caminho de desenvolvimento pessoal, disciplina e crescimento espiritual.
Historicamente, o treinamento incluía:
  • Poomsaes (formas) que ensinavam movimentos de defesa e ataque
  • Kyorugi (combate) para aplicação prática das técnicas
  • Kyokpa (quebramento) para demonstrar poder e precisão
  • Filosofia e meditação para desenvolvimento mental e espiritual
  • Técnicas de defesa pessoal para situações reais
No entanto, com a esportivização e principalmente após a inclusão olímpica, observamos uma mudança drástica no foco dos treinamentos. Academias passaram a priorizar quase exclusivamente o aspecto competitivo, especialmente o Kyorugi olímpico, que possui regras específicas muito diferentes de um combate real.

Como o modelo olímpico está descaracterizando o Taekwondo

Regras que limitam o arsenal técnico

O Taekwondo olímpico utiliza um sistema eletrônico de pontuação que favorece determinados tipos de chutes, principalmente os de média e alta altura. Isso tem levado a uma especialização excessiva em técnicas específicas, deixando de lado um vasto arsenal que compõe a arte marcial completa.
Técnicas fundamentais como:
  • Defesas contra agarramentos
  • Combate a curta distância
  • Quedas e projeções
  • Golpes de mão (socos, cotoveladas)
  • Defesa contra múltiplos oponentes
Todas essas técnicas, essenciais para a defesa pessoal real, são praticamente ignoradas no treinamento olímpico, criando uma geração de praticantes com conhecimento técnico limitado e desequilibrado.

A perda dos valores filosóficos

Mais preocupante que a limitação técnica é o abandono gradual dos princípios filosóficos do Taekwondo. Os cinco princípios fundamentais – cortesia, integridade, perseverança, autocontrole e espírito indomável – estão sendo substituídos por valores puramente esportivos como competitividade e busca por resultados a qualquer custo.
Em muitas academias modernas, raramente se discute o significado do “Do” (caminho) ou se pratica a meditação e o desenvolvimento do caráter. O juramento do Taekwondo, que inclui compromissos como “construir um mundo mais pacífico” e “ser campeão da liberdade e da justiça”, tornou-se apenas uma formalidade sem significado prático no treinamento diário.

O impacto nas novas gerações

As consequências desta transformação são evidentes nas novas gerações de praticantes. Muitos faixas-pretas jovens:
  1. Desconhecem a história e filosofia do Taekwondo
  2. Não sabem aplicar técnicas em situações reais de defesa pessoal
  3. Têm dificuldade com formas tradicionais (poomsaes)
  4. Valorizam apenas medalhas e competições
  5. Abandonam a prática ao final da carreira competitiva
Esta realidade contrasta fortemente com o propósito original do Taekwondo como arte marcial para a vida toda, que deveria acompanhar o praticante desde a infância até a velhice, proporcionando benefícios físicos, mentais e espirituais em todas as fases.

A visão dos mestres tradicionais

Muitos mestres tradicionais, especialmente aqueles formados na Coreia antes da era olímpica, expressam preocupação com o rumo que o Taekwondo tem tomado. O Grande Mestre Hwang Ki, fundador do Tang Soo Do (uma das artes que originou o Taekwondo moderno), chegou a se opor à unificação e esportivização excessiva, temendo justamente a perda da essência marcial.
O próprio General Choi Hong Hi, considerado o pai do Taekwondo, manifestou preocupações semelhantes, levando à divisão entre ITF (International Taekwon-Do Federation) e WTF (World Taekwondo Federation, hoje World Taekwondo), esta última responsável pelo Taekwondo olímpico.

É possível um equilíbrio?

Apesar das críticas, não podemos negar que a inclusão olímpica trouxe visibilidade e popularidade ao Taekwondo. O desafio está em encontrar um equilíbrio que permita aproveitar os benefícios da vertente esportiva sem sacrificar a essência da arte marcial.
Algumas academias têm conseguido manter este equilíbrio, oferecendo:
  • Treinamento competitivo para aqueles que desejam seguir carreira esportiva
  • Aulas tradicionais focadas em defesa pessoal e desenvolvimento integral
  • Estudo filosófico e histórico do Taekwondo
  • Prática regular de todas as disciplinas (formas, quebramento, combate, defesa pessoal)
Estas academias demonstram que é possível formar campeões sem abandonar os princípios fundamentais que fazem do Taekwondo uma arte marcial completa.

Conclusão: Um chamado à reflexão

Como praticantes, instrutores e mestres de Taekwondo, precisamos refletir sobre o legado que estamos construindo. Queremos ser lembrados apenas por medalhas e troféus, ou por termos preservado e transmitido uma arte marcial milenar em sua plenitude?

O Taekwondo olímpico não precisa matar a verdadeira arte marcial. Pelo contrário, pode ser uma porta de entrada para que mais pessoas conheçam e se aprofundem no Taekwondo tradicional. No entanto, isso só acontecerá se nós, responsáveis pela transmissão deste conhecimento, mantivermos vivos os princípios, técnicas e valores que fazem do Taekwondo muito mais que um esporte.

A medalha mais valiosa que podemos conquistar não é de ouro, prata ou bronze, mas a capacidade de transformar vidas através dos ensinamentos completos desta nobre arte marcial.
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